Eu não sou de sentir tédio. Não me considero um especialista. Muito longe disso. Na verdade, existe uma automotivação neurótica que quase sempre me demove compulsivamente de todo o buraco emocional. Quase sempre consigo tirar a cabeça presa nos corais do fundo para chegar à luz do sol.
Num extremo do espectro das emoções humanas é um antidepressivo natural inserido embaixo da pele, quem sabe, ainda na sala de parto, ou ainda algo que veio de muito longe, talvez de um espírito já pronto na sua vocação de permanecer sobre a superfície, ou ainda das cidades muradas de Luca, na Itália, ou bem antes, das cavernas do Paleolítico.
O surf estendido pelos últimos 45 anos, esse mestre da superação, não nego, também contribuiu para esse fardo quase não pousar nos meus ombros.
O tédio, no entanto, no outro extremo, é uma fuga pura e simples de uma realidade que a percepção detecta no seu radar como desagradável. Não querer encarar o lado sombrio e deprimente da vida? Maybe. Tenho sobrevivido e vivido razoavelmente bem assim. Mas isso não quer dizer que eu não saiba nada sobre o tema. Estou escrevendo porque senti a sombra dele – do tédio – tentando me alcançar. Um medo de que isso acontecesse subiu ao peito e, por alguns segundos, eu pude sentir o que não queria.
O tédio não me invade como o mar, mas me salga a alma como bacalhau ao sol. Ele é assim, pude ver, tão contundente quanto superficial. Ao contrário do que parece, não ocupa o lugar de outras coisas, mas toma o espaço do vazio. E com isso não quero dizer que é aquela ausência de tempo que se sente dentro de um tubo. Vazio mesmo. Ele faz do vazio algo ainda mais sem nada, embora deixe a sensação de ser uma modalidade exótica de conteúdo. É também parceiro disfarçado de um tipo estranho de silêncio.
O tédio, dizem alguns aficionados que sobreviveram anos em sua companhia, é gostoso. Uma gostosura com viés de sofrimento. Como a heroína, como ser previsivelmente abandonado depois do sexo previsivelmente alucinado com a mulher surpreendentemente fatal, como pular de um precipício atado a um pequeno par de asas, como o prenúncio e o prepúcio da calma e inevitável chegada da morte. O tédio remete ao ócio. Mas não é. Nada poderia ser mais diferente.
O ócio é uma escolha do homem, o tédio é uma imposição dos deuses, quando colocam as mãos cheias de penas e escamas sobre a nossa testa enquanto dormimos, para que acordemos na manhã do reino fora de nós. Alguns acreditam que os amaldiçoados com essa bênção são os que estavam chegando muito perto das respostas eternas. E os deuses, com a proverbial inveja que os antigos gregos detectaram muito bem – e que lhes custou o fígado -, tratam de desviá-los do caminho.
Pode parecer desleixo, mas na verdade o tédio é um querer não denso. Nesse sentido é até zen, embora perigoso e fluido. É algo que não pede construção, não exige realização, não se importa em chegar. Não quer chegar. O tédio é autosuficiente, não precisa e não deseja nada. Compraz-se em sofrer solitário – trazendo junto seu hospedeiro -, primo que é, em primeiro grau, da melancolia, embora possuam tipos sanguíneos diversos com traços faciais similares. O tédio é o cunhado fracassado do sucesso.
Sinto tédio quando não só não há mais projetos ou objetivos à vista, mas quando minha atuação nessa vida parece inadequada, fora de lugar. Quando me perco de vista. Teria errado a trilha? O tédio se instala naquele espaço deixado pela indecisão.
Sim, o tédio pode ser mortal, embora raramente leve ao óbito. É como se toda a nossa carne se transformasse em matéria disforme e pegajosa, os pensamentos se recusassem a pensar, e os sentimentos já amortecidos pelo haxixe espiritual fossem tirar férias na Jamaica, nos deixando dentro das mesmas paisagens e pessoas para a eternidade. Imagino que ele seja de alguma maneira, necessário. Algum tipo de equilíbrio torto de uma natureza equivocada – vamos aqui considerar a premissa discutível de que tudo existe por alguma razão… Nesse sentido, o tédio é como os mosquitos e seus mistérios: “serve exatamente para quê?”.
Se numa vertente o exercício da poesia deixa a alma sarada, na outra a prática do tédio põe a alma em banho-maria. É a sombra da alegria, a literal influência da lua minguante, o muro de arrimo de família da poesia.
Sidão Tenucci é humano. Embora não seja um fã do tédio, às vezes cruza com ele pelas quebradas. É também diretor de marketing da OP Ocean Pacific e viajou por 55 países, gerando até o momento três livros: “Almaquatica”, Ed. Terra Virgem, em parceria com o fotógrafo Klaus Mitteldorf e o designer gráfico David Carson, o romance de aventuras “O Surfista Peregrino” e o livro de poemas ilustrados por 55 artistas, “Poentes de Amor”, pela Ed. Decor (todos disponíveis na Livraria Cultura).
Texto – Coluna Soul Surf